SÁBADOS, FESTAS E LUA NOVA
Devem os cristãos hoje observar os festivais judaicos?
Que relação têm eles com o descanso do sétimo dia semanal?
(parte 1)
Q
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ue significado têm para os cristãos de hoje os festivais do Antigo
Testamento? Como deve a teologia adventista, que reconhece a validade do
sábado, ver as festas levíticas?
Recentemente, argumentos
favoráveis e contrários à observância daquelas festas têm sido apresentados em
muitas igrejas. Portanto, o assunto deve ser abordado. Este artigo se propõe
desenvolvê-lo em duas partes, A primeira examinará cinco argumentos geralmente
empregados sobre a observância das festas: O valor pedagógico de sua interpretação
tipológica, o proveito de lembrar a ligação histórica entre as festas de Israel
e a proclamação cristã, o relacionamento entre as festas e o sábado, a relação
entre festa da Lua Nova com o sábado, e o potencial para melhor relacionamento entre judeus e cristãos.
No trato de cada questão, a proposta é examinar os
problemas levantados pela observância cristã das festas e discutir os
argumentos opostos a tal prática. A segunda parte do artigo sugerirá direções a
ser tomadas, com algumas aplicações
práticas, para a vida da igreja.
Instrumento de ensino
Os festivais bíblicos estavam intimamente ligados ao
sistema sacrifical. Os sacrifícios não eram simples rituais ou expressões
culturais de fé; eram fundamentais para o significado dos festivais. Por exemplo,
a festa da Páscoa tinha no cordeiro seu significado fundamental e razão de ser
(Gn 12:3-10), não vice-versa. A Páscoa foi especificamente designada como
lembrança do sacrifício do cordeiro oferecido no evento do Êxodo: a passagem de
Deus pelo sangue do dilacerado animal, garantindo assim redenção (Êx 12:13).
Essa ligação é tão forte que atualmente a Páscoa é identificada com o próprio
cordeiro (2Cr 30:15).
Não somente a Páscoa, mas também todos os outros
festivais giravam em torno dos sacrifícios em ligação com a expiação. Os textos
bíblicos que tratam das festas estipulam o sacrifício de um bode como oferta
pelo pecado, oferecida para fazer expiação em favor do povo (Nm 28:15, 22, 30;
29:5, 11, 28). No Novo Testamento, os sacrifícios apontam para a vinda e função
de Cristo Jesus, identificado como Cordeiro pascal (Jo 1:36; cf. 1Co 5:7), e
todo o sistema sacrifical é visto como sombra de “coisas futuras’ (Hb 10:1; cf.
Cl 2:16, 17). Os sacrifícios transmitem uma mensagem profética sobre o processo
da salvação: Deus viria e Se ofereceria em sacrifício para expiar o pecado e
redimir a humanidade.
O efeito do sacrifício de Cristo é definitivo e perpétuo.
Nesse sentido temos que compreender a frase “estatuto perpétuo por vossas
gerações” (Lv 23:14). Ela não significa perpétua estipulação, senão isso
significaria que ainda temos de fazer todos os sacrifícios. Na verdade, a mesma
frase também é usada para os sacrifícios (Lv 3:17) e todos os outros rituais associados
com o tabernáculo: abluções (Êx 30:21), vestes sacerdotais (Êx 28:43), lâmpadas
(Êx 27:20, 21) e assim por diante.
Em outras palavras, o uso da expressão “perpétuo” não
significa obrigação perpétua, mas deve ser compreendida dentro do contexto do
templo, isto é, enquanto o templo permanecesse. Agora que os sacrifícios já não
são necessários, por causa da ausência do templo e porque a profecia neles
contida foi cumprida em Cristo, esses sacrifícios e os rituais a eles
relacionados já não são obrigatórios. O tipo encontrou o Antítipo. Realizar
sacrifícios com a ideia de que são compulsórios para nossa salvação torna
irrelevante o Antítipo, o Messias.
A mesma expressão “perpétuo” é usada para o concerto da
circuncisão (Gn 17:13). Acaso, significa que a circuncisão continua válida? Se
esse fosse o caso, estaria em contradição com a recomendação dos apóstolos em
Atos 15. Essas observações nos ajudam a compreender por que a expressão “perpétuo”,
relacionada às festas bíblicas, não apoia a ideia de requerimento eterno.
Mas é precisamente essa função tipológica/profética das
festas que inspira os que apoiam a observância delas. Eles argumentam que a
observância das festas ajudará os cristãos a obter maior e mais rica
compreensão do plano da salvação. O profundo significado das festas já foi
atestado no Novo Testamento; elas não somente comemoravam eventos passados de
salvação, especialmente a saída do Egito e os milagres do Êxodo, mas também
apontavam à salvação cósmica e escatológica.
Na verdade, é significativo que Jesus tenha morrido e
ressuscitado durante o tempo da Páscoa, que Ele não apenas celebrava
comemorando o Êxodo, mas também investido com o significado aplicado a Si mesmo
(Mt 26:17-30). É também significativo o derramamento do Espírito, associado com
a proclamação do evangelho às nações, durante o Pentecostes, tempo da colheita.
Basicamente, as festas da primavera apontavam para o primeiro passo da
salvação: a primeira vinda de Cristo, Sua morte, ressurreição e entronização à
destra do Pai, e a expansão universal do concerto através da proclamação global
do evangelho.
As festas do inverno apontavam para o segundo passo da
salvação: o juízo no Céu e a proclamação das três mensagens angélicas sobre a
Terra, preparando para a salvação cósmica e a segunda vinda de Cristo (Ap
14:6-13). Como Richard Davidson afirma: “As primeiras e as últimas festas do
calendário cúltico de Israel parecem ligar a inauguração e a consumação da
história da salvação de Israel, respectivamente”.1 A progressão das
festas no calendário anual, seguindo a progressão do plano histórico da
salvação, tem sido usada como argumento em favor da adoção desses festivais
como parte de nossa vida religiosa. Mas, a função pedagógica das festas não
implica que elas sejam leis divinas para ser perpetuamente observadas.
Entretanto, permanece o principal problema: Devem aquelas festas ser observadas
pelos cristãos hoje?
Ligação histórica
Uma função das festas era sua aplicação à vida de Israel
em Canaã. Quando o templo foi destruído e os judeus foram exilados, eles foram
obrigados a criar e desenvolver novas tradições para observância das festas,
adaptadas à situação do exílio, isto é, sem o templo e sem os sacrifícios. O
fato de que Jesus e Seus discípulos também observaram os festivais e, depois,
os primeiros cristãos (judeus cristãos), mesmo sem sacrifícios, sugere que não
é inconcebível para os cristãos celebrarem tais festivais.
Todavia, esse exemplo não pode ser usado como argumento
para justificar a celebração cristã dessas festas desde que Jesus e os cristãos
primitivos se abstiveram não apenas das festas judaicas, mas também de outras
práticas culturais e cerimoniais que não foram adotadas pelos cristãos gentios,
conforme Atos 15. Ademais, os cristãos, especialmente os adventistas do sétimo
dia, não têm uma tradição histórica de festivais mostrando como celebrá-los.
Como, então, o fariam? Em que bases justificariam isso? A ideia de observar as
festas tropeça no fato de que o sistema bíblico requeria oferecimento de
sacrifícios no templo (Dt 16:5).
Sem apoio de tradição histórica e cultural, a observância
de festivais levíticos está destinada a causar tensões e dissensões na igreja. Além
disso, considerando que não existe nenhuma lei bíblica indicando como elas
deviam ser observadas fora do templo, não há como produzir leis a esse
respeito. Ángel Rodriguez adverte: “Aqueles que promovem a observância de
festivais têm de criar sua própria maneira de celebrá-los e, nesse processo,
criar tradições humanas que não estão baseadas na explícita expressão da
vontade de Deus”.2
Sábado e festas
A observância das festas pode também afetar nossa
teologia do sábado. A Bíblia explica claramente a principal diferença entre as
duas coisas. Os festivais não são como o sábado semanal. O sábado, como sinal,
nos lembra a criação do Universo, sendo, portanto, eterno em sua relevância.
Deus estabeleceu o sábado no fim da semana da criação, quando ainda não havia
pecado na Terra e, consequentemente, nem sacrifícios nem festas. Diferente dos
festivais, o sábado é parte dos dez mandamentos e foi dado a toda humanidade.
De fato, sua origem antedata a entrega da Torá a Israel no Sinai (Êx 16:23-28).
Além disso, Levítico 23:3, 4, que registra os festivais
junto com o sábado, sugere que existe uma diferença essencial entre as duas
categorias de dias santos. Ali, o sábado é mencionado no início da lista.
Então, os outros dias são relacionados sob a designação: “São estas as festas
fixas do Senhor” (v. 4), sugerindo que o sábado pertence à outra categoria
diferente de “festas”. Embora o sábado também implicasse sacrifícios (Nm 28:9,
10), é significativo que a indicação de oferta pelo pecado, que sempre aparece
relacionada aos festivais, esteja ausente na referência ao sábado. Essa clara
distinção indica que a função dos sacrifícios no contexto do sábado é
essencialmente diferente da função no contexto dos festivais.
O sábado difere não apenas de qualquer outro dia da semana,
mas também de qualquer dia de festa. É digno de nota que essa diferença, e até
a superioridade do sábado em relação aos festivais, é sistematicamente indicada
na leitura litúrgica da Torá. No sábado, há mais participação nessa leitura do
que em qualquer dia de festa. Igualar o sábado aos festivais é fundamentalmente
errado e afeta o verdadeiro significado desse dia, finalmente comprometendo seu
caráter obrigatório.
A compreensão de que o sábado difere dos festivais, e é
mais importante que eles, nos ajuda a compreender a natureza da ligação entre
os dois mandatos. O fato de que Levítico 23 os relaciona juntos, embora
destacando a diferença entre eles, sugere que o sábado é a coroa, o clímax dos
festivais. Paradoxalmente, essa ligação especial contém uma lição sobre o valor
relativo dos festivais e o valor absoluto do sábado. Em vez de levar à promoção
da observância dos festivais, o estudo deles deve nos levar à maior
compreensão, apreciação e experiência do sábado. Pois o sábado “é o fundamento
de todo tempo sagrado”,3 e assim contém e cumpre todos os valores e
verdades sugeridos pelos festivais.
Sábado e Lua Nova
Entre as festas, a da Lua Nova ocupa apenas lugar
secundário. Diferente de outros dias santos da Bíblia, essa festa nunca é
qualificada como dia sagrado em que todo o trabalho era proibido.4 No período
do primeiro templo, era relegada à condição de “semifesta”, e sua observância
desapareceu totalmente durante o período do segundo templo. Assim, na metade do
quarto século, quando os sábios tinham estabelecido um calendário permanente, a
proclamação do dia da Lua Nova foi descontinuada.5 A tradição
judaica geralmente designa um papel “menor” para essa festa.6
Portanto, é surpreendente que a festa da Lua Nova tenha
recebido renovada atenção ultimamente, por parte de alguns religiosos. Uma
justificativa para isso é Isaías 6:23: “E será que, de uma Festa da Lua Nova à
outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante Mim, diz o
Senhor”. Esse texto é usado para sugerir que a festa da Lua Nova será observada
no Céu juntamente com o sábado. Mas, o texto em si não fala tanto da
observância dos dois dias. Ele enfatiza a continuidade da adoração, uma característica
da Nova Terra. Com esse propósito, o autor bíblico se refere a duas
extremidades de tempo: “de uma... à outra”; “de um... a outro”. O que esse
texto realmente diz é que a adoração continuará como uma atividade da
eternidade – “de uma Lua Nova à outra”; “de um sábado a outro”, como se
dissesse: de mês a mês, de semana a semana.
Uma segunda razão atualmente oferecida para a observância
da Lua Nova é que a lua determina o dia de sábado. Com base em textos como
Gênesis 1:14 e Salmo 104:19, os defensores dessa ideia argumentam que o sábado
semanal estava originalmente ligado ao ciclo lunar. Realmente, esses dois
textos relacionam à lua às estações (mo’adim). Desde que Levítico 23 inclui o
sábado na categoria de mo’adim (estações, convocações; v. 2), e desde que a lua
regula as estações (Gn 1:14), alguns concluem que ela também governa o sábado.
Mas esse argumento suscita alguns problemas, incluindo os seguintes:
·
O
significado da palavra hebraica mo’adim. Ela se relaciona ao verbo y’d (Êx
30:36; 2Sm 20:5) cujo significado é “designar” um tempo ou lugar (2Sm 20:5; Jr
47:7). Então, mo’adim se refere a “designação”, “reunião”, “convocação” no
tempo ou espaço. Agora, nem todas as convocações (mo’adim) são reguladas pela
lua. Quando Jeremias (8:7) usa esse termo para se referir aos tempos de
migração da cegonha e outros pássaros migratórios, ele não implica que a
migração da cegonha seja governada pela lua, uma vez que ela volta regularmente
à Palestina em toda primavera. Mo’adim simplesmente se refere a um tempo
específico ou lugar designado por seres humanos (1Sm 20:35) ou por Deus (Gn
18:14), podendo ser semanal (1Sm 13:8), mensal e anualmente (Gn 17:21), ou
mesmo profeticamente (Dn 12:7). Assim, não depende necessariamente da lua.
·
A ideia de
que o sábado depende da lua nova foi originalmente copiada da pressuposição
histórico-crítica da influência de Babilônia sobre a Bíblia. De acordo com essa
visão, o sábado foi originalmente tomado ou do costume babilônico sobre os dias
lunares, dias proibidos associados às fases lunares, caindo nos dias 7, 14, 19,
21 e 28 do mês, ou do dia mensal de lua cheia (shab/pattu). Mas esse argumento
não tem apoio na Escritura e já não é levado a sério pelos eruditos bíblicos.7
·
A ideia de
dependência do sábado da lua – colocando-o em qualquer dia da semana,
dependendo do movimento desse satélite – contraria o testemunho da História.
Primeiramente, contraria o testemunho dos judeus. Milhões deles têm guardado o
sábado por milhares de anos, e essa prática nunca foi mudada nem perdida quer
pelo calendário juliano, quer pelo gregoriano. A mudança apenas afetou o número
de dias e não os dias da semana.8 Os judeus ainda guardam o mesmo
sábado do sétimo dia, dado na criação, o mesmo dia ordenado no Sinai e
observado por Jesus e os apóstolos, ou seja, nosso sábado. Essa é uma ideia
baseada na especulação humana, assim como a tradição humana substituiu o sábado
pelo domingo.
·
O argumento
de que o dia da crucifixão de Jesus foi a Páscoa, ou seja, o 14º dia da lua
nova (Êx 12:6) e, ao mesmo tempo, dia de sábado, não pode ser usado para apoiar
a ideia de que o sábado depende da lua. De acordo com o testemunho dos
evangelhos, Jesus foi crucificado no “dia da preparação” (sexta-feira) e não no
sábado.
·
O fato de
que a função da lua começou no quarto dia da semana da criação (Gn 1:14-19)
torna impossível identificar o sábado, estabelecido três dias depois, como um dia
de lua.
Relacionamento judeu-cristão
A prática cristã dos festivais pode ser contraproducente
para o relacionamento judeu-cristão. Os cristãos observadores dessas festas
adotam tradições que pertencem a outra cultura, mostrando-se artificiais e
falsos. Também serão ofensivos aos judeus que percebem nesse empenho uma
armadilha para convertê-los. Os cristãos que imitam os judeus na observância
dos festivais, tendem a fazer isso no contexto da liturgia da igreja,
envolvendo toda a comunidade, como um evento público. Desnecessário é dizer que
essa adaptação é ofensiva aos judeus que, tradicionalmente, sempre celebraram
as festas no lar, no círculo íntimo da família. Portanto, a reprodução cristã
pode se tornar uma caricatura ou errônea interpretação; na melhor das
hipóteses, uma pálida imitação do original. Em lugar de ser meio para alcançar
judeus, as adaptações cristãs dos seus festivais podem afastá-los.
Por outro lado, a observância dos festivais pode
aproximar os cristãos dos judeus, cujas tradições os primeiros têm sido
ensinados a desprezar. Na verdade, o antissemitismo foi a principal motivação
para o repúdio não apenas do sábado, mas também das festas. Aparentemente, pela
observância dos festivais, os cristãos estariam fazendo não apenas uma declaração
contra as vozes antissemíticas, mas também, ao mesmo tempo, produzindo uma
forma de contextualização para alcançar os judeus. Todavia, a situação não é
tão simples. A observância dos festivais encontra sérios problemas teológicos,
culturais, éticos e práticos, diante dos quais devemos agir com reservas e
bastante cuidado. (Continua)
por Jacques B. Doukhan
Professor no Seminário Teológico da Universidade Andrews, EUA
Referências:
1 Richard M. Davidson, Symposium on
Revelation-Book 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992),
v. 6, p. 120.
2 Ángel M. Rodriguez, Israelite Festivals and
the Christian Church (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute,
2005), p. 9.
3 Roy E. Gane, Shabbat Shalom 50, nº 1
(2003), p. 28.
4 Ibid., p. 414.
5 The Oxford Dictionary of Jewish Religion (Oxford:
Oxford University Press, 1997), p. 591.
6 Irving Greenberg, The Jewish Way (Nova
York: Simon & Schuster, 1993), p. 411.
7 Gerhard Hasel, The Sabbath in Scripture and
History (Washington, DC: Review and Herald, 1982), p. 21, 45.
8
http://en.wikipedia.org/wiki/gregorian_calendar (acessado em 30/03/2009).
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