quarta-feira, 29 de maio de 2013

A BÊNÇÃO DA MALDIÇÃO


Muitas coisas têm acontecido nos últimos 15 anos que têm provocado o pensamento lógico e despertado nossa criatividade. Fatos como: a virada do milênio, o atentado ao World Trade Center (11.09.2001), a morte do Papa João Paulo II e consequentemente a escolha do novo Papa (2005), e recentemente o possível fim do mundo de 21 de Dezembro de 2012. Se não fosse o suficiente, em Fevereiro desse ano, outro grande fato abalou o mundo e tem fomentado muitas ideias e especulações – a renúncia ao papado por Joseph A. Ratzinger. Diante desses fatos, sejam eles prestes a acontecer ou depois do ocorrido, muitos comentários têm surgido a respeito. Comentários esses que são baseados, muitas vezes, nas profecias e simbolismos bíblicos. Alguns chegam a ser absurdos e fantasiosos, enquanto outros parecem extremamente plausíveis. Muitas pessoas ficam preocupadas, outras temerosas. Algumas mantêm-se céticas, enquanto outras ignoram qualquer fato. Mas o assunto é debatido, comentado e especulado, seja em sermões e palestras no interior de igrejas, ou em documentários e reportagens na televisão. A questão é: por quê? Por que essa necessidade de estarmos sempre preocupados ou envolvidos com algo “místico” e “sensacional” envolvendo um grande acontecimento global? Contudo, ao passar o evento, não correspondendo às nossas expectativas e imaginações, encontramos em um novo ou iminente fato uma oportunidade para iniciar tudo de novo, formando assim um tipo de ciclo vicioso apocalíptico (evento x => sensacionalismo apocalíptico => expectativa => decepção).
A resposta a tudo isso, eu creio, está dentro de nós. Dentro de nós parece haver uma chama, mesmo que pequena ou mesmo negativa, que arde continuamente. Uma chama de esperança. Creio que estamos cansados do mundo em que vivemos e da triste vida que levamos. Assim como a cada momento quase tudo a nossa volta sofre um contínuo upgrade, parece que gostaríamos que o mundo sofresse um tipo de mudança drástica. Mesmo que isso colocasse em jogo nossa própria existência (downgrade). A cada novo fato global, criamos um mundo de possibilidades apocalípticas envolvendo o fim do mundo ou a destruição total da humanidade. Por mais estranho que seja, isso sugere que temos esperança de algo. Essa esperança é tão almejada e necessária que desenvolvemos por meio de especulações, conjeturas, hipóteses e sensacionalismo, os mais diversos tipos de reações e ideias, quase sempre construídas sobre os símbolos bíblico-apocalípticos. Nutrindo em silêncio uma curiosa expectativa sobre o que acontecerá após tudo acabar.
Sábios judeus do passado, prevendo possíveis especulações e reações como essas, formularam uma maldição com relação à marcação de datas sobre a chegada do fim (um evento que está relacionado à vinda do Messias mencionada em Daniel 9:24-27): “Que sejam arruinados os ossos daqueles que calculam o fim”.[1] Apesar de parecer cruel, essa maldição contém, ou é, uma grande bênção. Pois o motivo da maldição é descrito em seguida: “Pois eles [os que marcam datas] diriam: Ele nunca virá, visto que o tempo predeterminado chegue e Ele não venha”.
O ponto a ser observado, é que esses documentários, reportagens, notícias e comentários especulativos, sensacionalistas e hipotéticos em cima desses “eventos apocalípticos”, diminuem nossa esperança no verdadeiro evento que está por vir. Porque a cada vez que construímos uma teologia duvidosa em torno de tais eventos, baseados em nossa ansiedade, podemos aos poucos perder a esperança ante as decepções. Diante disso, a maldição judaica não diz que não devamos estudar as profecias, mas que não devemos especula-las. Dessa forma, a maldição se tornará uma bênção – uma proteção contra a perda da esperança.
Encontramos essa mesma ideia paradoxal na palavra hebraica para “abençoar” – barakh. A palavra barakh é bastante intrigante para alguns tradutores, pois embora traga geralmente a conotação de “abençoar”, algumas vezes também pode ser traduzida por “amaldiçoar” (Jó 2:9; 1Rs 21:10). Esse estranho paradoxo na verdade pode ser facilmente entendido quando visto à luz do pensamento hebraico. Pois no pensamento hebraico é comum que uma mesma palavra possa, ao mesmo tempo, significar o seu antônimo. Isso porque as palavras hebraicas não são estáticas, mas vivas – a essência está na ação/realização que a palavra representa. Assim, uma bênção pode se tornar uma maldição quando utilizada sem a direção divina. Da mesma forma, uma maldição pode se tornar uma bênção se tomada com respeito e amor a Deus. Esse foi o caso com Saul, Judas, Ananias e Safira, Salomão, entre outros, que transformaram as bênçãos de Deus em maldições para sua vida.
Uma profecia bíblica é uma bênção divina, mas pode se tornar em uma maldição quando mal interpretada. Todos os momentos são oportunos para entendermos e procurarmos saber a vontade de Deus, mas nesses e noutros momentos de grandes fatos mundiais, tomemos a oportunidade para aprender ainda mais sobre a revelação de Deus. Contudo, antes de começarmos freneticamente a fazer malabarismos com a palavra de Deus ante o primeiro ruído de notícia, devemos procurar estudar as profecias bíblicas e nos manter atentos aos eventos, esperando com cautela e em oração que a própria história revele mais detalhes (Dn 2:20-21), para que então possamos comparar com as profecias a fim de entendê-las melhor (Mt 24:15ss).
Ao fazermos assim nossa esperança é renovada, conservada e aumentada. Mas se continuarmos a especular e profetizar eventos alheios à palavra de Deus corremos o risco de perder a esperança e, ainda pior, corremos o risco de diminuir a esperança do nosso próximo. As profecias são bênçãos de Deus se usadas com sabedoria, mas essas bênçãos podem se tornar maldições em nossas mãos. Por outro lado, a maldição dos sábios judeus pode ser uma bênção para nós e para as pessoas que nos cercam se levada em consideração. Mantendo viva a esperança no verdadeiro evento – a volta de Jesus.
E para os ansiosos e apressados que continuam a se perguntar: “mas por que o Senhor tarda tanto?”, a resposta se encontra no Seu grande amor pelos seres humanos. Assim, não deveríamos nós atentar à Sua Palavra e, igualmente, amar nosso próximo a fim de criar/conservar dentro deles a chama da esperança no grande evento apocalíptico que é o retorno do nosso Salvador Jesus Cristo? Sobre isso o Talmude continua: “Mas por que o Senhor tarda tanto? Por causa do Seu atributo de justiça que O faz demorar. Então por que devemos esperar? Para sermos recompensados pela esperança, como está escrito: ‘bem-aventurados todos os que nEle esperam’” (Isaías 30:18).[2]

Por Wilian Cardoso



[1] Talmude Babilônico Sanhedrin 97b.
[2] Idem.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O Enigma de Isaías 53: A Identidade Misteriosa do Servo

Uma das perguntas mais estarrecedoras da passagem bíblica em Isaías 53 é concernente à identidade do Servo sofredor.
O Servo e/ou Israel
Às vezes o Servo claramente designa o povo de Israel (Isaías 41:8-10; 44:1-3, 21; 45:4; 48:21; 49:3); às vezes é ambíguo e pode ser entendido tanto como Israel como um grupo ou um indivíduo distinto (42:1-4); e às vezes claramente e sem ambiguidade se refere a um indivíduo (49:5-7).

Nosso texto aparece para pertencer à terceira categoria. Aqui Israel não é mais identificada explicitamente como o Servo, como no caso de outras passagens. Também a passagem faz uma distinção clara entre o povo de Israel e o Servo. De fato, a troca tem tomado lugar em 49:5.

Em 49:3 o Servo é identificado explicitamente como Israel: “Tu és meu servo, O Israel”. Então, de repente, em 49:5-6, o Servo é alguém que une supostamente Israel a Deus e deve, portanto, ser compreendido como alguém distinto de Israel: “É uma coisa tão pequena que Tu devas ser Meu Servo para levantar as tribos de Jacó, e restaurar o remanescente de Israel; eu também darei a Ti como uma luz aos gentios, Tu serás Minha Salvação aos confins da terra.”
Em 50:10, o profeta fala a Israel na segunda pessoa do plural, tal como em 50:1, enquanto faz uma distinção clara entre Israel e o Servo: “Quem entre ti [Israel] teme ao Senhor? Quem obedece a voz de Seu Servo?” O profeta apela a Israel “temer ao Senhor” paralelo com seu chamado para “obedecer a voz de Seu Servo” e portanto implica que o Servo e o povo de Israel são claramente duas entidades diferentes.

No último Canto do Servo em Isaías 52:13-53:13 a situação não é tão clara como nas outras passagens pela simples razão que o povo de Israel não é nomeado especificamente. Uma análise mais próxima da passagem é então necessária para examinar a natureza do relacionamento entre o Servo e Israel. Para este assunto, é importante primeiro ser capaz de identificar quem está implícito na primeira pessoa do plural (“nós”, “a nós”, “nosso”). Em outras palavras, quem são aqueles que diz em 53:1:”Quem tem crido em nosso relatório?” Eles são Israel a quem está sendo endereçado os reis e as nações mencionadas acima (52:10)? Ou são eles, ao contrário, aqueles reis e nações?

Primeiro de tudo, a ligação linguística em shama (ouvir) entre o fim do 52:15 e 53:1 sugere que a pessoa que fala não pode ser os reis e nações. De fato, o orador de 53:1 ss. que faz o “relatório”(shemuat: literalmente, “o que é ouvido”) não pode também ser aquele que “ouve” (shama) este relatório em 52:15. Aqueles que exclamam, “Quem acreditou em nosso relatório?” não pode portanto ser identificado com os reis e nações uma vez que eles são descritos como aqueles que “calam suas bocas” e nunca “ouviram” tais coisas. Também aqueles que ouviram a mensagem (os reis e as nações) em 52:15 – e estão pasmos, pois eles nunca ouviram tais coisas – correspondem àqueles em 53:1 que não puderam “acreditar no que ouviram”. No entanto, os reis e as nações são aqueles que estão “ouvindo” o relatório. Esta última observação sugere que aqueles que falam na primeira pessoa deveriam ser identificados como Israel. Uma situação similar está descrita em 49:1 onde Israel é claramente identificado como o orador (49:3) – a primeira pessoa é usada – e convida as nações a “ouvir”(shama).

Além disso, uma investigação sistemática da primeira pessoa do plural no livro de Isaías revela que onde quer que a primeira pessoa do plural é usada (“nós”, “a nós”, “nosso”, etc.), sempre se refere a Israel ou Judá. Baseado nessas observações do nosso texto e no contexto geral do livro, é razoável concluir que o orador em Isaías 53 é o povo de Israel e os ouvintes são as nações. O Servo é, portanto, alguém distinto de Israel, como é evidente nos versos seguintes:
Quando nós [Israel] O vimos [o Servo], não havia nenhuma beleza que nós [Israel] desejássemos Nele [o Servo] (53:2).

E nós [Israel] escondemos, como era, nossas faces Dele [o Servo]; ... e nós [Israel] não O estimamos [o Servo] (53:3).

Certamente Ele [o Servo] levou nossas [Israel] tristezas e carregou nosso [Israel] sofrimento; ainda que nós [Israel] estimamos Seu [o Servo] ferimento (53:4).

Mas Ele [o Servo] foi ferido por nossas [Israel] iniquidades ... o castigo por nossa [Israel] paz estava sobre Ele [o Servo], e pelas Suas [o Servo] pisaduras nós fomos curados (53:5).

Todos nós [Israel] como ovelhas temos estado desviados; ... e o Senhor colocou sobre Seus [o Servo] ombros a iniquidade de todos nós [Israel] (53:6).

Pelas transgressões do Meu povo [Israel] Ele [o Servo] foi ferido (53:8).

Neste capítulo, o Servo é claramente distinguido do povo de Israel; ainda que o Servo seja relacionado a Israel. A natureza desse relacionamento é sugerida pela passagem que precede nosso texto. Em 52:3-6, a condição de sofrimento e “opressão” do povo (versos 4-5) dispara a ação de Deus para “confortar” e “redimir” “seu povo” (versos 6-9).

O Servo Sofredor: Um Sacrifício
A ideia central da passagem é o sofrimento e morte do Servo para o propósito de reconciliação. Esta ideia aparece em oito dos doze versos (Isaías 53:4-8, 10-12). Também ocupa a seção central do quiasmo. Esta ideia foi sugerida em Gênesis 3:15, a qual relata a morte da Serpente – em razão da redenção da raça humana – até a morte da “posteridade” da mulher. É agora expressado de uma maneira mais explícita e descrita em termos e motivos emprestados diretamente do mundo Levítico. O Servo é comparado a um cordeiro pronto para o matadouro (Isaías 53:7; cf. Gênesis 2:7; Levítico 4:32; 5:6; 14:13, 21; etc.). A forma passiva, uma das características mais características do estilo Levítico, é mais proeminente em nossas passagens. É usado dezesseis vezes no texto; doze delas é no Niphal, a forma técnica do “veredicto declaratório” sacerdotal o qual é normalmente usado em conexão com os sacrifícios. E esta intenção religiosa-cúltica é portanto confirmada pelas sete referências a “pecado” cobrindo todos os três termos técnicos (pesha, awon, chet):

v.5: Ele foi ferido pelas nossas transgressões (pesha)
Ele foi machucado por nossas iniquidades (awon).
v.6: E o Senhor pôs sobre seus ombros a iniquidade (awon) de todos nós.
v.11: Ele carregará suas iniquidades (awon).
v.12: Ele carregou o pecado (chet) de muitos.

Esta linguagem é muito familiar e sugere que o Servo é identificado como a oferta de sacrifício a qual no sistema Levítico carregava o pecado e assim permitia perdão de Deus: “Se ele traz um cordeiro como sua oferta pelo pecado, ... ele colocará sua mão sobre a cabeça de sua oferta pelo pecado ... então o sacerdote fará expiação por seu pecado (chet) que ele cometeu, e lhe será perdoado” (Levítico 4:32-35).

Um Rei
Das primeiras palavras do cântico, o Servo é descrito como uma figura real que será “exaltado e louvado e será muito alto” (Isaías 52:13); Ele é então associado com reis que “calam suas bocas a Ele” (52:15) e com “o grande” e “o forte” com os quais ele divide a mesma saúde (53:12). Também a palavra “semente” (53:10) a qual é usada para caracterizar Sua posteridade indica que este Servo pertence à linhagem Davídica, uma vez que a palavra “semente” é uma palavra técnica no livro de Isaías para designar especificamente a posteridade Davídica. E de fato, o nome dado a Ele , “Meu Servo”(abdi) na introdução (52:13) e na conclusão (53:11) confirma esta identificação , uma vez que este é o título mais freqüente dado na bíblia ao Rei Davi. E este título do Rei Davi é ainda atestado no próprio livro de Isaías: “ ... ‘e ele não entrará nesta cidade’, diz o Senhor. ‘Pois Eu defenderei esta cidade, para salvá-la por Mim mesmo e por Meu servo (abdi) Davi’” (37:34-35).

Deus
Por mais estranho que possa parecer, o Servo é relacionado intimamente com o próprio Deus. Esta conexão especial já é sugerida em alguns versos anteriores em Isaías 50:10, onde a referência ao Servo é paralela à referência ao Senhor: “Quem entre nós teme ao Senhor?; Quem obedece a voz de Seu Servo?” é também significativo que o evento de Deus confortando Seu povo (52:9) é descrito através da imagem da revelação do braço do Senhor (52:10), uma linguagem que caracteriza a vinda do Servo (53:1). Também, a qualidade divina do Servo é sugerida no fato de que Ele é capaz de “justificar muitos” (53:11), uma qualificação que pertence ao juiz (Deuteronômio 25:1) ou a Deus (1 Reis 8:32).

A extensão universal da influência do Servo confirma, de fato, Seu status supremo. Seu domínio afeta “muitas nações” e “reis” (Isaías 52:15). A palavra rabbim (muitos), a qual é repetida quatro vezes em nosso texto (52:15; 53:11, 12a, 12b), é um termo técnico frequentemente usado na bíblia para cobrir uma extensão universal (veja especialmente Daniel 9:27; 11:33; 12:4, etc).

É também significativo que Isaías 53:6, o centro do cântico, é literalmente constituído como uma inclusão com a palavra hebraica kol (todos). Esta é a palavra que é tradicionalmente usada para expressar uma referência universal. É a palavra chave, por exemplo, da passagem marcando o fim da História da Criação (Gênesis 2:1-3), onde é usada três vezes para se referir ao cosmos, toda a criação de Deus. Em nossa passagem, o “todos” aplica-se ao povo que está dizendo: “todos nós” (kullanu). O primeiro “todos nós” é concernente ao erro do povo, “todos nós (kullanu)como ovelhas temos nos desviado”. O segundo “todos nós” é concernente à iniquidade do povo: “E o Senhor colocou sobre Seus ombros a iniquidade de todos nós” (kullanu).

A última (mas não menor) evidência da identificação do Servo com Deus é dada implicitamente através da metáfora do “rosto escondido”(seter panim): “Nós escondemos, como eram, nossas faces Dele” (Isaías 53:3). Este é um motivo importante no livro de Isaías. Das 31 ocorrências na bíblia, sete são encontradas no livro de Isaías, onde esta expressão carrega uma dimensão particular do relacionamento de Deus com Seu povo. Uma vez que os oradores de Isaías 53:6 só podem ser humanos, segue-se que a pessoa de quem a face está escondida (verso 3) tem que ser Deus. Um exemplo característico ocorre somente alguns versos depois de nossa passagem, onde deus declara: “Com uma pequena ira Eu escondi Minha face de ti por um momento”(54:8). Aproximadamente todas as passagens bíblicas aplicam esta expressão a Deus como sujeito. É Deus quem esconde Sua face. O Profeta Isaías vai mais longe ao fazer o esconder da face um feito distintivo do verdadeiro Deus: “Verdadeiramente Tu és Deus, que esconde a Ti mesmo, Ó Deus de Israel, o Salvador!” (45:15).

O fato que esta expressão é usada em Isaías 53 em relação ao Servo sugere que nesta passagem o Servo Sofredor é identificado com Deus mesmo. É também significativo que o mesmo Servo Sofredor declara sobre si mesmo em outra passagem: “Eu dei Minhas costas àqueles que me golpearam, e Minhas faces àqueles que me puxaram a barba: Eu não escondi minha face da vergonha e da saliva”(50:6).

A expressão “esconder minha face” que é na maioria dos casos usada por Deus para descrever sua relação com a raça humana, é aqui aplicada ao Servo, mas desta vez como sujeito.

Em resumo, qualquer momento que a bíblia usa a expressão “esconder minha face” (seter panim), sempre implica Deus em relacionamento com humanos, da mesma forma que Deus é o sujeito do verbo, aquele que esconde Sua face dos humanos (a maioria dos casos [28 de 31]), ou que Deus é o objeto do verbo. Ele é o único de quem os humanos escondem seus rostos (os outros 3 casos).

O Messias Sofredor na Tradição Judaica
A interpretação messiânica de Isaías 53 já é encontrada anteriormente no segundo século A.E.C. na Comunidade Qumran, que aplicou a profecia de Isaías 53 ao “Messias Salvador”. Uma passagem no Talmude alude a uma tradição antiga de acordo com a qual, por causa de 53:4, o Messias estava a chamar a si mesmo um leproso: ”Os mestres [Rabbana] têm dito que o leproso da escola do Rabi... é o seu nome, pois foi dito: ‘Ele tem carregado nossas doenças e tem carregado nossos sofrimentos, e nós o temos considerado como um leproso, esmagado por Deus e humilhado’” (Sanhedrin 98b). Uma invocação característica no Midrash refere-se a este mesmo texto: “Messias de nossa justiça [Meshíach Tsidkenu], ainda que nós somos Seus antepassados, Tua habilidade é maior que nós porque Tu carregaste o fardo de pecados de nossos filhos, e nossas grandes opressões foram colocadas sobre Ti... Entre as pessoas do mundo Tu trouxeste somente desprezo e escárnio a Israel... Tua pele encolheu, e Teu corpo se tornou seco como a madeira; Seus olhos estão vazios pelo jejum, e Sua força tornou-se como um vaso quebrado – tudo isto sucedeu por causa dos pecados de nossos filhos” (Pesiqta Rabbati, Pisqa 37).

É sempre a figura do Messias sofredor que o Midrash Rabbah descreve em conexão com Isaías 53: “O Rei Messias... oferecerá seu coração para implorar misericórdia e muito sofrerá por Israel, chorando e sofrendo como está escrito em Isaías 53:5 ‘Ele foi ferido pelas nossas transgressões,’ etc. : quando os israelitas pecam, ele invoca pela misericórdia deles, como está escrito: ‘Sobre ele estava o castigo que nos faz completos, e da mesma forma o Senhor tem posto sobre ele a iniquidade de todos nós. E este é o que O Santo – Seja bendito para Sempre! – decretou de maneira a salvar Israel e regozijar-se com Israel no dia da ressurreição” (Bereshith Rabbati de Moshe Hadarshan, em Gênesis 24:67).

O Targum Aramaico de Jonatan também interpreta Isaías 53 em um sentido messiânico. Começando com as passagens introdutórias, a identidade do Servo se torna clara: “Veja, meu servo o Messias prosperará, será levantado e feito forte; por tanto tempo quanto a casa de Israel adoecer após ele”. A conexão teológica entre o ritual do sacrifício e o Messias que aparece no coração de Isaias 53 é também atestado no Talmude. De fato, todo o sistema sacrificial era interpretado lá como uma referência à esperança messiânica: “R. Eleazar disse em nome do R. Josei: ‘Isto é uma halakha [um princípio] que concerne ao Messias’. Abba respondeu a ele: ‘Não é necessário dar instruções aqui sobre todos os sacrifícios de vítimas, pois isto é uma halaka que concerne à era messiânica’” (Zebahim 44b; Sanhedrin 51b). Mais recentemente um número significante de Hasidim Lubavitcher tem aplicado o “Servo Sofredor” de Isaías 53 ao seu líder espiritual, o Rebbe, Menahem Mendel Schneerson. Obviamente, o messianato do Rebbe não foi estabelecido, e ele não foi reconhecido como o Messias pela maioria dos judeus contemporâneos; mas o fato é que, apesar da antiga disputa Judaica-Cristã, muitos judeus ortodoxos ainda escolhem valer-se da passagem de Isaías 53 em seus argumentos messiânicos mostrando quão profundo e forte este significado messiânico é na consciência judaica tradicional.

As Duas Faces do Messias
Mesmo o difícil paradoxo do Messias que seria uma vítima humilhada e um rei glorioso tem seu lugar na tradição judaica. Os rabis estão tão confusos pelas suas contradições que eles concluem às vezes que há dois Messias. Uma passagem Talmúdica elabora nesta observação de uma dupla figura. Quando o Messias desempenha o papel de uma vítima, ele é então identificado geralmente como filho de José pela analogia da história da opressão de José (Gênesis 37), e quando ele é um rei, ele é então reconhecido como o filho de David (Sukkah 42a). é também interessante que esta passagem talmúdica constrói sua reflexão messiânica precisamente na base de Zacarias 12:10: “E eu despejarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém o Espírito de graça e súplica; então eles olharão para Mim aquele a quem eles traspassaram; eles lamentarão por Ele como aqueles que lamentam por seu único filho, e se afligirão por Ele como aqueles que se afligem por um primogênito.” Duas opiniões são então propostas na discussão rabínica. Uma defende a ideia que este Messias que sofre e morre não é nenhum outro que o Messias filho de José que será morto antes do fim da redenção completa(geullah shelemah) o qual será trazido pelo “Messias Filho de Davi”. Outra, que não é o Messias que é morto mas a inclinação do mal(o yetser hara). Nesta conversação, o Messias é então associado com a guerra contra o mal. O Messias filho de José representaria o poder messiânico que lutaria e esmagaria o poder do mal e então seria seguido pelo Messias real filho de Davi para a última e completa redenção (geullah shelemah).

Na tradição talmúdica, no entanto, ambos o filho de José e o filho de Davi estão destinados a sofrer e morrer. O Talmude fala da morte do filho de Davi (Sanhedrin 98b). é também significativo que o Messias Sofredor retratado em Isaias 53 é identificado como o Rei Messias (Bereshit Rabbati em Gênesis 24:67), um título que designa o Messias especificamente como o filho de Davi (Bereshith Rabbati em Gênesis 19:34; compare Berakoth 5a, etc.). O Messias filho de José também aparece com o comportamento de um Messias glorioso. “Efraim [filho de José]Messias de nossa justiça, reina sobre eles [os povos do mundo]; os trata como um bem a ele” (Pesiqta Rabbati, Pisqa 37). Os ministérios dos dois Messias entretanto vêm juntos; freqüentemente dando a impressão de estarem fundidos em um. Se torna difícil desassociá-los, de tanto que são semelhantes. Esta identidade era enfatizada no Targum, que vai tão longe ao compará-los a “gêmeos” (Targum em Cânticos dos Cânticos 4:5 e 7:4). Alguém pode até mesmo querer saber, no pensamento dos antigos rabis, esta confusão com dois Messias não trai uma ideia fundamental que realmente havia somente um Messias. Uma discussão registrada no Talmude parece indicar que os rabis estavam se movendo nessa direção. Alguém envolvido na discussão inquiriu a respeito de que nome o Messias deveria ter. Tanto Menahem filho de Ezequias ou um segundo rei Davi que reinará gloriosa e eternamente, ou mesmo o leproso chamado para ser humilhado e carregar o fardo de nosso sofrimento e doenças (Sanhedrin 98b). a possibilidade de dois Messias nunca aparece no curso desta conversação. De fato, as discussões dos rabis parecem somente tentar entender a figura composta do Messias, pelos vários nomes que eles deram a ele são intencionados quiçá a descobrir algum aspecto de sua personalidade. De acordo com os estudos bíblicos e rabínicos, era concebível que um e a mesma pessoa poderia ter diversos nomes. Falar sobre um filho de José ou um filho de Davi não significava necessariamente dois Messias diferentes. De fato, uma passagem do Talmude de Jerusalém registra os dois lados do Messias : “Se o rei messiânico é dos viventes, seu nome é Davi; se dos mortos, seu nome é Davi”(Berakhot 2:4). A tradição judaica confirma que o Messias filho de José é apesar de seu título de descendente de Davi.

Um Messias Divino
Os antigos rabis foram ainda mais longe. Ao longo da apresentação de um Messias com carne e sangue humanos, eles ousam identificar o Messias com o próprio Deus. A ideia implícita em Isaías 53 que o Servo Sofredor, o filho de Davi, é também Deus encontra sua expressão ousada na literatura rabínica. “O Messias”, diz o Talmude, “terá o nome do Santo.... Pois é dito em Jeremias 23:6: ‘E este é o nome pelo qual Ele será chamado: “O Senhor é nossa justiça”’” (Baba Bathra 75b). “Qual é o nome do rei Messias?” pergunta o Midrash. R.Abba ben Kahana diz: “Yahweh é seu nome como escrito em Jeremias 23:6. Este é o nome pelo qual Ele será chamado: ‘O Senhor [Yahweh] é nossa justiça’” (Lamentations Rabbah 1:1:16; Midrash de Provérbios 19:19-21; Midrash de Salmos 21:1,2, etc.).
O Targum de Jonatan adapta a visão típica tradicional, uma vez que traduz o texto nesta maneira: “’Veja, os dias estão vindo,’ diz Yahweh, ‘quando eu trarei a Davi o Messias de justiça. Ele reinará como Rei e prosperará.’ ... E veja o nome que a Ele será dado: Justiça será dada a nós naqueles dias em nome de Yahweh” (Targum de Jeremias 23:5,6). O Messias de Israel então é semelhante a Deus e carrega o nome (Yahweh) de Deus. Mas a identidade não é limitada ao nome: a identidade inclui atributos comuns, tais como a eternidade e a realeza. De fato, numerosas passagens no Midrash e no Talmude trazem o Messias e Deus juntos em sua eternidade e fazem de ambos os “primeiros”. “Eu manifestarei a mim mesmo o primeiro como Deus ... e Eu trarei a ti o ‘primeiro’, e este é o Messias” (Pesiqta de Rab Kahana, Pisqa 28).

Comentando em Isaías 9:6, o Targum clareia ainda portanto os atributos divinos do Messias: “O profeta diz à casa de Davi: Um professor mestre é nascido a nós, um filho é nosso; Ele tomará a lei sobre si e será um guarda sobre ela; desde o princípio Seu nome será pronunciado: Maravilhoso em conselho, Poderoso Deus, Eterno, Messias durante cujos dias a paz será abundante sobre nós” (Targum de Isaías 9:5).

Um antigo Midrash vai além ao identificar a monarquia do Messias com a divina monarquia. “Um rei de carne e osso não permite a ninguém colocar a coroa em sua cabeça; mas o dia virá quando o Santo, bendito seja Ele, colocará Sua coroa na cabeça do Rei Messias” (Êxodo Rabbah 8:1, em Êxodo 7:1).

Nenhum espanto então que o Messias e Deus dividam o mesmo espírito! De fato, o Messias possui o mesmo espírito que Deus. O Midrash toma esta lição das primeiras palavras da história bíblica da Criação. “Gênesis 1:2: ‘ O espírito de Deus estava se movendo sobre a face das águas’ indica que o espírito do Rei Messias estava presente, como escrito em Isaías 11:2: ‘ O Espírito do Senhor está sobre Ele’” (Gênesis Rabbah 2:4, em Gênesis 1:2).

De acordo com a tradição judaica, em sintonia com o registro bíblico, o Messias deveria ser identificado com o próprio Deus. Salvador, eterno, Rei supremo, o próprio Adonai dotado com o mesmo Espírito de Deus, mas também o filho de Davi, o filho de Jessé. O que se tornará inconcebível e irreconciliável mais tarde no judaísmo era porém perfeitamente aceitável nos primeiros estágios do pensamento rabínico.

Após um completo exame da literatura judaica antiga, esta é a surpreendente conclusão do acadêmico judeu David Flusser, da Universidade Hebraica de Jerusalém:

“Na Literatura do Midrash, as formas do Messias adquirem uma dimensão a qual é além da vida diária e ultrapassa o entendimento humano.”
por Jacques B. Doukhan D.H.L.,Th.D.

1 - Isaías 1:9; 9:10; 16:6; 22:13; 24:16; 25:9; 26:1,8,13,17-18; 28:15; 33:2; 42:24; 59:9-12; 64:3,5-6,8-9.
2 - Veja Isa
ías 41:8; 43:5; 44:3; 45:19,25; 59:21; 61:9; 65:9; 66:22; compare também com Jeremias 31:36-37; 33:26; 2 Crônicas 20:7.
3 - 2 Samuel 3:18; 7:5; 1 Reis 11:32,36,38; 14:8; 2 Reis 19:34; 20:6; 1 Crônicas 17:7.
4 - Isa
ías 8:17; 45:15; 50:6; 53:3; 54:8; 57:17; 59:2.
5 - Êxodo 3:6 com Isa
ías 53:3 é a única exceção, quando um ser humano esconde sua face de diante de Deus.
6 - Veja André Dupont-Sommer, Os Escritos Essênios de Qumran, traduzido por G. Vermes (Gloucester . Mass.: Peter Smith, 1973), 364-366.
7 - Veja David Berger, The Rebbe, the Messiah, and the Scandal of Orthodox Indifference (London: Portland, Or.: Littman Library of Jewish Civilization, 2001), 23.
8 - Compare Abraham Sarsowsky, Die ethisch-religiöse Bedeutung der Alt-testamentlichen Namen nach Talmud, Targum, und Midrash(Kirchhain: Max Schmersow, 1904).
9 - R. David ibn Abi Zimra (Radbaz, 1480-1574), Responsa (Hebrew), vol. iii, no.1069; compare Berger, The Rebbe, 38.
10 - Esta é a designação comum de Deus na literatura rabínica.
11 - David Flusser, “O Conceito do Messias”, em Jewish Sources in Early Christianity (New York: Adam Books, 1987), 56.


quarta-feira, 13 de março de 2013


Notas Sobre A Contribuição Judaica Para A Cultura Brasileira

A chuva caía em grossas gotas sobre os paralelepípedos encharcados formando rápidos cursos e inúmeras poças. Os cavalos apressavam-se, espargindo água para os lados, enquanto a comitiva cortava a madrugada.

Dentro da carruagem com as cortinas cerradas, o padre procurava obter do prisioneiro a derradeira confissão.

Este, usando uma camisola de algodão grosseiro, mãos atadas com cordas rústicas, ia murmurando de olhos fechados as suas últimas orações. As torturas não tinham conseguindo quebrantar o seu espírito e há muito, a dor, de acérrima inimiga, havia se transformado em suave companheira.

Ainda é madrugada quando chegam ao local. A execução não havia sido anunciada e não havia público, mas, apesar do segredo, os rituais legais da morte precisavam ser seguidos. Sobre o patíbulo, o carrasco, o sacerdote e o prisioneiro que pediu para não ser vendado. Como testemunhas os soldados da guarda e o condutor da carruagem.

Eleva-se a voz do sacerdote: - pela última vez infeliz, renegas a heresia e aceitas Jesus Cristo como seu único Senhor e Salvador ?
Enquanto o carrasco ajeita a corda em seu pescoço, o prisioneiro murmura: - Ouve ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um!

Ouve-se um forte estalido do alçapão se abrindo e outro, mais fraco, do pescoço se quebrando. A corda balança algumas vezes e pára. Os guardas retiram o corpo, enfiam-no em um grande saco de aniagem e o jogam no chão da carruagem. O padre esparge água benta em forma de cruz sobre o cadáver que seria queimado e reduzido a pó, “para que dele não restasse qualquer memória”.
A chuva torrencial lava qualquer sinal do acontecido. O sol começa a nascer em úmida Lisboa em meados de fevereiro de 1744.

Quem era afinal a vítima do carrasco ?
Pedro de Rates Hanequim, cristão-novo, erudito historiador, geógrafo, astrônomo, matemático, e aventureiro, um dos maiores cérebros do império português, viveram 26 anos no Brasil e finalmente morreu em sua própria terra como apóstata.

Esse notável estudioso, que sabia ler os livros sagrados no original em hebraico e aramaico e as versões em latim e grego, após décadas de estudo identificou o lugar onde teria sido o paraíso terrestre, o Éden.

Dizia que do local do paraíso seria possível ver uma constelação em cruz, o trono de Deus, o Cruzeiro do Sul; que a arvore do conhecimento era não a macieira e sim a bananeira, que ele chamava de árvore da vida e os nove rios que demarcavam o paraíso seriam os rios que formam a bacia amazônica : Amazonas, Juruá, Tefé, Guará, Purus, Madeira, Tapajós. Xingu e Tocantins.

O paraíso terrestre teria sido onde hoje se situa o Estado do Pará, que aliás, em hebraico, significa “vaca”.

Entre os anos de 1492 e 1540, a o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição obrigou a conversão ao catolicismo de cerca de 190.000 judeus em Portugal e Espanha. Outras centenas de milhares de homens, mulheres e crianças que se negaram à conversão foram torturados e dizimados da forma mais cruel. Observe-se que nesta época cerca de metade de população de Portugal, em torno de um milhão de habitantes, era composta de judeus.
Basta dizer que o primeiro livro impresso em Portugal, em 1487, foi a Torah (Pentateuco) em caracteres hebraicos.

Em 1500 o Brasil é descoberto pela esquadra de Pedro Álvares Cabral, abrindo-se, assim, um "Mar Vermelho" para a fuga dos judeus portugueses que corriam risco de vida. Um dos importantes oficiais da esquadra de Cabral era o interprete judeu Gaspar da Gama, bem como eram confeccionados por cartógrafos e instrumentadores como o judeu Jehuda Cresques da Escola Naval de Sagres, os mapas que conduziram Cabral e outros navegadores, durante as suas expedições.

Em 1503 o judeu Fernão de Loronha, que passou para a história com o nome de Fernando de Noronha lidera um grupo de judeus portugueses e apresenta a D. Manuel a primeira proposta de colonização do novo território. Por este documento o grupo de judeus cristãos-novos liderados por Noronha arrendava todo o Brasil e obtinha o monopólio de tudo que o país produzia, principalmente pau-brasil e comércio de escravos, em troca de mandar anualmente seis barcos carregados de mercadoria para a metrópole, descobrirem 300 léguas de novas terras e construírem e manterem algumas fortificações.

Em 1516, D. Manuel distribui ferramentas aos que quisessem se mudar para o Brasil. Ele queria implantar engenhos de cana nesta terra "recém descoberta". Milhares de judeus aproveitam esta oportunidade.

Em 1531, Martin Afonso de Souza, discípulo do judeu português Pedro Nunes foi mandado pelo Rei D. João III para a primeira expedição sistemática colonizadora tendo implantado o primeiro engenho de açúcar do país em S. Vicente. As primeiras usinas de açúcar do Brasil foram criadas por judeus egressos da Ilha da Madeira, onde esta cultura era tradicional.

Em 1550 havia 5 engenhos no país. Em 1600 havia 120. Segundo os historiadores Oliveira Lima e Gilberto Freyre,”a industria do açúcar foi importada pelo Brasil pela maior parte por judeus, que constituíam o melhor elemento econômico de sua época, e lucravam com fugir à fúria religiosa que grassava na Península Ibérica”. Um dos maiores usineiros de açúcar de Pernambuco era Diogo Fernandes, marido da judia Branca Dias, uma das poucas brasileiras executadas pela Inquisição e que dá nome nos dias de hoje a um belíssimo palacete tombado, sede de uma Loja Maçônica em João Pessoa.

Em 1577 com o término do domínio espanhol sobre Portugal, muitos judeus vieram para o Brasil direto da Península Ibérica. Alguns destes foram para a América do Norte, Holanda e América Espanhola. Entre os anos de 1591 e 1618 os judeus se espalharam pelo Brasil, principalmente para o Sul.

1601 - Licença para a saída do Reino e promessa de nunca mais se renovar a proibição. Serviço de 170 mil cruzados. A licença para a saída era expedida em forma de um salvo-conduto, com direito apenas a uma ida (e nunca à volta) e exigia que o nome do solicitante fosse aportuguesado.

Há milhares de sobrenomes judeus utilizando a combinação das cores, dos elementos da natureza, dos ofícios, cidades e características físicas, tendo como raiz, por exemplo as seguintes palavras:
Cores: Roit ou Roth (vermelho); Grun ou Grinn (verde); Wais ou, Weis ou Weiss (branco); Schwartz ou Swarty (escuro, negro); Gelb ou Gel (amarelo); Blau (azul)
Panoramas: Berg (montanha); Tal ou Thal (vale); Wasser (água); Feld (campo); Stein (pedra); Stern (estrela); Hamburguer (morador da vila).
Metais, pedras preciosas e mercadorias: Gold (ouro), Silver (prata), Kupfer (cobre), Eisen (ferro), Diamant ou Diamante (diamante), Rubin (rubi), Perl (pérola), Glass, (vidro), Wein (vinho).
Vegetação ou natureza: Baum ou Boim (árvore); Blat (folha); Blum ou Blume (flor); Rose (rosa); Holz, (Madeira).
Características físicas: Shein ou Shen (bonito); Hoch (alto); Lang (comprido); Gross ou Grois (grande), Klein (pequeno), Kurtz (curto); Adam (homem).
Ofícios: Beker (padeiro); Schneider (alfaiate); Schreiber (escriturário); Singer; (cantor); Holtzkocker (cortador de madeira), Geltschimidt (ourives), Kreigsman, Krigsman, Krieger, Kriger (guerreiro, soldado), Eisener (ferreiro), Fischer (peixeiro ou pescador), Glass ou Gleizer (vidreiro).

Utilizaram-se as palavras de forma simples, combinadas e com a agregação de sílabas como son, filho; man, homem ou er, que designa lugar.

Na versão para o português ou espanhol, procurou-se aproximar o máximo possível os mesmos critérios. Considere-se também a mudança do idioma português através dos séculos.

Alguns dos sobrenomes de judeus aportuguesados são: Alves; Andrade; Alencar, Amaral; Alfaia; Aguiar; Arruda; Benjamim; Bento; Bentes; Bezerra; Brito; Botelho; Cáceres; Cabral; Carvalho; Cardoso; Cerqueira; Costa; Cintra, Contente; Daniel; David; Duarte; D’Avila; Dias; Elias; Franco; Ferreira; Fundão; Feijão; Fonseca; Gabai; Gabilho; Gomes; Henriques; Laredo; Ladeira; Lisboa; Linhares; Levi; Leite; Madeira; Machado; Marques; Matos; Matatias, Moreno; Mendes; Mello; Medina; Muniz; Navarro; Neto; Nunes; Noronha; Osório; Oliveira; Obadia; Passarinho; Pina; Pinto; Pereira; Prado: Porto; Rocha; Ribeiro; Regatão; Rego; Rodrigues; Salomão; Santos; Saraiva; Salvador; Serra; Silva; Silveira; Simão; Soares; Vasconcelos; Viana, Vieira e muitos outros. Recentemente fotografei na parede da primeira sinagoga das Américas, a Zur Israel, em Recife, um quadro com centenas de sobrenomes aportuguesados dos judeus que vieram da Península Ibérica nos anos da Inquisição.

1605 - (16 de janeiro). Perdão geral em troca do donativo de 1.700.000 cruzados. Em 1610 retira-se a concessão de saída de 1601.

De 1637 a 1644 – São tempos áureos para os judeus no governo holandês de Maurício de Nassau. Neste período, funda-se a 1ª Sinagoga "Zur Israel", em Pernambuco, quando vem da Holanda o 1º rabino de descendência Portuguesa Isaac Aboab da Fonseca.

Com a derrota dos holandeses para os portugueses em 1654, um grupo de prósperas famílias judias estabelecidas havia décadas no Recife, temendo a volta da Inquisição toma uma navio e ruma para uma outra colônia holandesa mais ao norte, Nova Amsterdã. Esse grupo faria parte dos fundadores da cidade de Nova York. A família proprietária do maior jornal do mundo, o New York Times, descende em linha direta desses judeus de Pernambuco.

1770-1824 - Período de liberalização progressiva, forte imigração de judeus marroquinos e alsacianos para a Amazônia,que acabaram por monopolizar a produção e exportação de borracha durante o seu período de maior apogeu e gradual assimilação dos judeus.

Os imigrantes judeus vinham para Belém do Pará e se estabeleceram em Belém, Manaus, Cametá, Gurupá, Breves, Baião, Macapá, Santarém, Itaituba, Óbidos, Parintins, Maués, Itacoatiara, Manacapuru, Coari, Tefé, Humaitá, Porto Velho, e outras cidades.

Outro ramo foi para o Nordeste e se estabeleceu no Ceará, criando uma grande e próspera colônia em Sobral, especialmente por causa do porto de Camocim, que nesta época não era alfandegado, e da excelente estrada de ferro, construída por D. Pedro II, que ligava o porto a Sobral. Outra grande colônia se estabeleceu em Recife, e menores na Paraíba, Bahia e Rio Grande do Norte.

Os judeus foram os primeiros regatões da Amazônia e a bordo de seus barcos e batelões levavam mercadorias para vender no mais remotos rincões em troca de castanha, borracha, bálsamo de copaíba, peles e couros e outros produtos que depois eram exportados.

Entre 1824-1855 ocorreu a fase da assimilação profunda, subseqüente à cessação da imigração judaica homogênea e a equalização total entre judeus e cristãos perante a lei.

O período entre 1855 e 1900 marcou o início do momento imigratório moderno, caracterizado pelas primeiras levas de imigrantes judeus, oriundos, sucessivamente, da África do Norte, da Europa Ocidental, do Oriente Próximo e mesmo da Europa Oriental, precursores das correntes caudalosas que, nas Primeiras décadas do século XX, viriam gerara e moldar a atual coletividade israelita do país.

Esses judeus se estabeleceram no sul e sudeste do país e se dedicaram principalmente ao comércio, a indústria, a construção civil e a área de comunicação. Por exemplo: o primeiro prédio feito em concreto armado em todo o Brasil, foi uma sinagoga em S. Paulo.

A Rede Brasil Sul de Comunicação com sede no Rio Grande do Sul, a Editora Abril; a Editora Nova América (dos gibis), a TVS; a rádio e TV Vanguarda de Sorocaba e outras tantas pertencem a famílias de origem judia.

Segundo alguns estudiosos, cerca de 10% da população brasileira, algo em torno de 15 a 17 milhões de pessoas, é descendente direta dos judeus fugidos da Inquisição. Isso quer dizer que a população de cristãos novos, descendentes de judeus no Brasil, é praticamente igual a população total de judeus em todo o mundo.

Três curiosas contribuições do judaísmo para a cultura brasileira são a carne de sol, a tapioca e talvez o chapéu de couro dos vaqueiros no Nordeste.

A dieta judaica chamada “kasher” obriga a comer a carne sem sangue, por isso, os cortes eram pendurados em varais para dessangrar. Ao se repetir o procedimento no Brasil, o sol, a umidade e temperatura cozinhavam a carne. Pronto: estava criada uma das mais tradicionais iguarias da região.

A tapioca é a tentativa de reproduzir o “matzá”, o pão ázimo de Moisés, com farinha de tapioca, porque não existia farinha de trigo no Brasil. Nascia mais uma delícia da cozinha regional brasileira.

A forma tradicional do chapéu de couro nordestino aproxima-se da forma da “kipá”, o solidéu, que era provavelmente usado pelos primeiros fazendeiros judeus da região. Observa-se enorme diferença entre os chapéus de palha do México, da Colômbia, do Panamá e dos Pampas, embora a mesma matéria prima estivesse disponível em todas as regiões.
Para encerrar, o nome Brasil tem como origem o pau-brasil, madeira de cor avermelhada que foi o primeiro produto de exportação do país, e que também é conhecido como pau-tinta ou pau-ferro. Curioso é notar que em hebraico, ainda hoje, a palavra que denomina ferro é barzel. Brasil poderia ser assim uma derivação dessa expressão.

por Prof. Michael Winetzki

Bibliografia:
1) A presença dos judeus em Sobral e circunvizinhanças....
Padre João Mendes Lira – Rio de Janeiro – 1988
2) Eretz Amazônia – Os judeus na Amazônia
Samuel Benchimol – Manaus, AM – 1998
3) Os judeus no Brasil Colonial
Arnold Wiznitzer – Ed. Pioneira – 1966
4) O ultimo cabalista de Lisboa
Richard Zimler – Companhia de Letras – 1997
5) O mistério do cubo sagrado ( no prelo)
Michael Winetzki – Brasília, DF – 2005
6) A fênix de Abraão
Sonia Bloomfield Ramagem - Brasília – 1994
7) Cristãos Novos na Bahia
Anita Novinsky – São Paulo – 1972
8) Visão Judaica on Line – diversos

segunda-feira, 4 de março de 2013


SÁBADOS, FESTAS E LUA NOVA
Devem os cristãos hoje observar os festivais judaicos? Que relação têm eles com o descanso do sétimo dia semanal?
(parte 2)


A
lguns cristãos, incluindo adventistas do sétimo dia, têm argumentado em favor da celebração dos festivais judaicos mencionados no Antigo Testamento. Mas  existem prós e contras. Valorizando as riquezas e bênçãos associadas àqueles festivais, mas estando atentos aos problemas implícitos na observância deles, os cristãos podem buscar maneiras apropriadas para se envolver com eles. Essa prática não apenas deveria ser conduzida com lucidez teológica, mas também com prudência, equilibrada sabedoria, humildade e boa vontade para aprender. Alguns itens práticos podem ajudar os cristãos a compreender a implicação dos festivais levíticos em sua vida e experiência de adoração. Vejamos.

Poderia ou deveria
Primeiramente, é importante compreender o caráter não normativo dos festivais. O Novo Testamento oferece um bom exemplo de como os cristãos devem se relacionar com eles. Muitos textos mostram a função tipológica dos sacrifícios e advertem contra a ideia de que eles ainda são normativos e necessários para nossa salvação. Por outro lado, em nenhuma parte do Novo Testamento encontramos que não deveríamos observá-los. Jesus e Seus discípulos o fizeram; e, posteriormente, os primeiros cristãos seguiram a mesma prática. Mas, eles nunca sentiram necessidade de forçar os gentios a observar aquelas festas (At 15).

Sabiamente, eles chegaram à seguinte conclusão: “não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, mas lhes escrever aconselhando-os a se abster das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas e da carne de animais sufocados com sangue. Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde o Pentateuco é lido todos os sábados” (At 15:19-21). O decreto apostólico se refere a três domínios da lei de Moisés: idolatria, ética e as leis dietéticas.

Essas prescrições estavam baseadas na leitura dos livros de Moisés, “todos os sábados”, sugerindo que o respeito ao quarto mandamento também estava implícito no decreto. Nenhuma referência aos festivais é feita no texto. Essa atitude contém um princípio de tolerância, não somente em relação aos gentios, mas também, implicitamente, em relação aos judeus que desejavam se unir à igreja. Se os apóstolos consideraram impróprio impor aos gentios um novo estilo de vida que implicava a observância da lei da circuncisão e dos festivais, também devia ser impróprio impor aos judeus um novo estilo de vida que implicava o abandono dessas práticas.

A palavra deveria não devia ser usada para impor nem para defender os festivais. Segundo Ellen G. White, “bom seria que o povo de Deus da atualidade tivesse uma Festa dos Tabernáculos”. Essa declaração sugere que ela poderia ter sido favorável a explorar essa possibilidade também para outras festas. Pois a razão dada para justificar a prática – “uma jubilosa comemoração das bênçãos de Deus a eles” (Patriarcas e Profetas, p. 540) – também podia ser aplicada a outros festivais.

Isso mostra não apenas uma atitude de abertura da parte de Ellen White, mas também de tolerância, sabedoria, humildade e respeito a outro ponto de vista.

Comemoração
Se escolhermos comemorar a festa segundo o calendário anual, devemos fazê-lo compreendendo o que a festa significa, da perspectiva adventista do sétimo dia. É intencional a escolha das minhas palavras aqui – “comemorar” os festivais em lugar de “guardar” ou “observar”. A comemoração não deve ser imposta como obrigação doutrinária, litúrgica, religiosa nem administrativa para a igreja como um todo. Pode ser sugerida como livre oportunidade para lembrar o plano divino da salvação bem como de nossa identidade e missão proféticas. Poderia servir como oportunidade para ensinar, aprender e proclamar no lar, na igreja e no mundo, a grande dimensão do plano da redenção.

Os festivais são nada mais que um instrumento evangelístico e pedagógico, para ser usado justamente como fazemos ao utilizar o modelo do santuário para ensinar lições objetivas sobre nossa mensagem. Trata-se de uma prática descritiva e instrutiva, não prescritiva. Se desejamos comemorar o festival, deve ser conveniente fazer isso na estação própria, não porque queiramos ou necessitemos ser fiéis às normas agrícolas, rituais e legalistas, mas por ser um momento oportuno em que outras pessoas também pensam a respeito; como no Natal, na Páscoa ou Dia de Ação de Graças (embora essas festas tenham componentes pagãos).

Entretanto, o principal problema está na maneira pela qual os festivais poderiam ser comemorados fora da Bíblia, considerando a ausência de instruções reveladas nesse contexto e de uma tradição de observância conforme é vista no judaísmo. Para evitar problemas que possam comprometer todo o projeto, há dois princípios fundamentais que devem governar e dirigir toda tentativa de comemoração dos festivais.

Respeito à originalidade do lugar de onde a inspiração das festas foi extraída, ou seja, das Escrituras e do testemunho de Israel. É necessário aprender sobre o genuíno caráter das festas e sobre as tradições judaicas associadas a elas. Evite enganos e interpretações confusas. Lembre-se de que as festas não são ocasiões para promoção de ideias e fantasias pessoais, hobbies que nada têm que ver com elas, tais como danças, aplicações carismáticas e espiritualistas, ou uso de vestuário exótico. Tais expressões podem ser entendidas como um jogo disfarçado e comportamento desrespeitoso.

Respeito ao novo lugar para onde a inspiração das festas tem sido importada, isto é, a igreja. Consulte líderes, para estar certo de que suas ideias dos festivais e as informações coletadas estão bem fundamentadas e consistentes com a teologia adventista. Esteja certo de que a experiência não será mal interpretada, não magoará outros membros e contribuirá para o bem da igreja. Permaneça humilde e não tente impor sua visão e prática aos membros da igreja que não partilham de sua perspectiva e sensibilidade espiritual. Seja prudente em relação aos seus sentimentos, emoções e convicções sobre esse tema. Não os confunda com a verdade divina ou o dom do Espírito.

Sim ou não?
Minha resposta à pergunta: “Devíamos nós observar os festivais?” é um claro e inequívoco “não!” Pelas seguintes razões:
Eles perderam sua qualidade normativa, considerando que foram cumpridos em Cristo e já não dependem da revelação bíblica. As leis das festas diferem de outras leis, como o sábado e leis dietéticas, que não estão relacionadas com sacrifícios, não dependem de tempo e são universais em caráter. É importante notar que Deus não nos deixou instruções sobre o modo pelo qual aqueles festivais deveriam ser observados fora do templo. Então, como poderia Ele requerer a observância dessas leis? Seríamos, então, dependentes apenas das tradições humanas, fora da revelação bíblica.

A missão e identidade do movimento adventista do sétimo dia não são definidas como entidades litúrgicas. Em vez disso, a Igreja Adventista do Sétimo Dia se identifica como mensageira profética com objetivo e missão universais, transcendendo a variedade de culturas e tradições e apontando a ordem escatológica.

Por outro lado, esse esclarecimento não deveria excluir as seguintes opções:
O valor pedagógico de explorar e comunicar as ricas verdades associadas aos festivais, ou seja, seu significado para o passado, presente e futuro. Apesar disso, toda a riqueza e beleza das festas não as transformam em leis normativas a ser seguidas. Elas permanecem exatamente como instrumento pedagógico.

A comemoração dos festivais pode ser usada para alcançar os judeus, assim como ocorre com o Natal, Páscoa e Dia de Ação de Graças, no interesse de alcançar outros grupos culturais religiosos ou seculares. Entretanto, mesmo nesse ponto, é preciso analisar bem a eficiência e até o aspecto ético desse método de contextualização evangelística.

Da mesma forma que os primeiros judeus cristãos, os adventistas judeus não deviam se sentir obrigados a deixar de desfrutar o prazer dos festivais; e ninguém deve desencorajá-los a fazer isso. As festas não somente pertencem à herança cultural deles, mas também lhes possibilitam meios para alcançar outros judeus. À luz das dimensões profética e teológica da mensagem adventista do sétimo dia, a experiência das festas pode se tornar para eles ainda mais significativa que no passado. Entretanto, deve haver clara compreensão de que as leis que ordenam a observância dessas festas e tradições não são revelações proféticas e já não são normativas.

Jacques B. Doukhan
Professor no Seminário Teológico da Universidade Andrews, EUA

sexta-feira, 1 de março de 2013


SÁBADOS, FESTAS E LUA NOVA
Devem os cristãos hoje observar os festivais judaicos? Que relação têm eles com o descanso do sétimo dia semanal?
(parte 1)

 
Q
ue significado têm para os cristãos de hoje os festivais do Antigo Testamento? Como deve a teologia adventista, que reconhece a validade do sábado, ver as festas levíticas?

            Recentemente, argumentos favoráveis e contrários à observância daquelas festas têm sido apresentados em muitas igrejas. Portanto, o assunto deve ser abordado. Este artigo se propõe desenvolvê-lo em duas partes, A primeira examinará cinco argumentos geralmente empregados sobre a observância das festas: O valor pedagógico de sua interpretação tipológica, o proveito de lembrar a ligação histórica entre as festas de Israel e a proclamação cristã, o relacionamento entre as festas e o sábado, a relação entre festa da Lua Nova com o sábado, e o potencial para melhor relacionamento entre judeus e cristãos.

No trato de cada questão, a proposta é examinar os problemas levantados pela observância cristã das festas e discutir os argumentos opostos a tal prática. A segunda parte do artigo sugerirá direções a ser tomadas, com algumas aplicações
práticas, para a vida da igreja.
           
Instrumento de ensino
Os festivais bíblicos estavam intimamente ligados ao sistema sacrifical. Os sacrifícios não eram simples rituais ou expressões culturais de fé; eram fundamentais para o significado dos festivais. Por exemplo, a festa da Páscoa tinha no cordeiro seu significado fundamental e razão de ser (Gn 12:3-10), não vice-versa. A Páscoa foi especificamente designada como lembrança do sacrifício do cordeiro oferecido no evento do Êxodo: a passagem de Deus pelo sangue do dilacerado animal, garantindo assim redenção (Êx 12:13). Essa ligação é tão forte que atualmente a Páscoa é identificada com o próprio cordeiro (2Cr 30:15).

Não somente a Páscoa, mas também todos os outros festivais giravam em torno dos sacrifícios em ligação com a expiação. Os textos bíblicos que tratam das festas estipulam o sacrifício de um bode como oferta pelo pecado, oferecida para fazer expiação em favor do povo (Nm 28:15, 22, 30; 29:5, 11, 28). No Novo Testamento, os sacrifícios apontam para a vinda e função de Cristo Jesus, identificado como Cordeiro pascal (Jo 1:36; cf. 1Co 5:7), e todo o sistema sacrifical é visto como sombra de “coisas futuras’ (Hb 10:1; cf. Cl 2:16, 17). Os sacrifícios transmitem uma mensagem profética sobre o processo da salvação: Deus viria e Se ofereceria em sacrifício para expiar o pecado e redimir a humanidade.

O efeito do sacrifício de Cristo é definitivo e perpétuo. Nesse sentido temos que compreender a frase “estatuto perpétuo por vossas gerações” (Lv 23:14). Ela não significa perpétua estipulação, senão isso significaria que ainda temos de fazer todos os sacrifícios. Na verdade, a mesma frase também é usada para os sacrifícios (Lv 3:17) e todos os outros rituais associados com o tabernáculo: abluções (Êx 30:21), vestes sacerdotais (Êx 28:43), lâmpadas (Êx 27:20, 21) e assim por diante.

Em outras palavras, o uso da expressão “perpétuo” não significa obrigação perpétua, mas deve ser compreendida dentro do contexto do templo, isto é, enquanto o templo permanecesse. Agora que os sacrifícios já não são necessários, por causa da ausência do templo e porque a profecia neles contida foi cumprida em Cristo, esses sacrifícios e os rituais a eles relacionados já não são obrigatórios. O tipo encontrou o Antítipo. Realizar sacrifícios com a ideia de que são compulsórios para nossa salvação torna irrelevante o Antítipo, o Messias.

A mesma expressão “perpétuo” é usada para o concerto da circuncisão (Gn 17:13). Acaso, significa que a circuncisão continua válida? Se esse fosse o caso, estaria em contradição com a recomendação dos apóstolos em Atos 15. Essas observações nos ajudam a compreender por que a expressão “perpétuo”, relacionada às festas bíblicas, não apoia a ideia de requerimento eterno.

Mas é precisamente essa função tipológica/profética das festas que inspira os que apoiam a observância delas. Eles argumentam que a observância das festas ajudará os cristãos a obter maior e mais rica compreensão do plano da salvação. O profundo significado das festas já foi atestado no Novo Testamento; elas não somente comemoravam eventos passados de salvação, especialmente a saída do Egito e os milagres do Êxodo, mas também apontavam à salvação cósmica e escatológica.

Na verdade, é significativo que Jesus tenha morrido e ressuscitado durante o tempo da Páscoa, que Ele não apenas celebrava comemorando o Êxodo, mas também investido com o significado aplicado a Si mesmo (Mt 26:17-30). É também significativo o derramamento do Espírito, associado com a proclamação do evangelho às nações, durante o Pentecostes, tempo da colheita. Basicamente, as festas da primavera apontavam para o primeiro passo da salvação: a primeira vinda de Cristo, Sua morte, ressurreição e entronização à destra do Pai, e a expansão universal do concerto através da proclamação global do evangelho.

As festas do inverno apontavam para o segundo passo da salvação: o juízo no Céu e a proclamação das três mensagens angélicas sobre a Terra, preparando para a salvação cósmica e a segunda vinda de Cristo (Ap 14:6-13). Como Richard Davidson afirma: “As primeiras e as últimas festas do calendário cúltico de Israel parecem ligar a inauguração e a consumação da história da salvação de Israel, respectivamente”.1 A progressão das festas no calendário anual, seguindo a progressão do plano histórico da salvação, tem sido usada como argumento em favor da adoção desses festivais como parte de nossa vida religiosa. Mas, a função pedagógica das festas não implica que elas sejam leis divinas para ser perpetuamente observadas. Entretanto, permanece o principal problema: Devem aquelas festas ser observadas pelos cristãos hoje?

Ligação histórica
Uma função das festas era sua aplicação à vida de Israel em Canaã. Quando o templo foi destruído e os judeus foram exilados, eles foram obrigados a criar e desenvolver novas tradições para observância das festas, adaptadas à situação do exílio, isto é, sem o templo e sem os sacrifícios. O fato de que Jesus e Seus discípulos também observaram os festivais e, depois, os primeiros cristãos (judeus cristãos), mesmo sem sacrifícios, sugere que não é inconcebível para os cristãos celebrarem tais festivais.

Todavia, esse exemplo não pode ser usado como argumento para justificar a celebração cristã dessas festas desde que Jesus e os cristãos primitivos se abstiveram não apenas das festas judaicas, mas também de outras práticas culturais e cerimoniais que não foram adotadas pelos cristãos gentios, conforme Atos 15. Ademais, os cristãos, especialmente os adventistas do sétimo dia, não têm uma tradição histórica de festivais mostrando como celebrá-los. Como, então, o fariam? Em que bases justificariam isso? A ideia de observar as festas tropeça no fato de que o sistema bíblico requeria oferecimento de sacrifícios no templo (Dt 16:5).

Sem apoio de tradição histórica e cultural, a observância de festivais levíticos está destinada a causar tensões e dissensões na igreja. Além disso, considerando que não existe nenhuma lei bíblica indicando como elas deviam ser observadas fora do templo, não há como produzir leis a esse respeito. Ángel Rodriguez adverte: “Aqueles que promovem a observância de festivais têm de criar sua própria maneira de celebrá-los e, nesse processo, criar tradições humanas que não estão baseadas na explícita expressão da vontade de Deus”.2

Sábado e festas
A observância das festas pode também afetar nossa teologia do sábado. A Bíblia explica claramente a principal diferença entre as duas coisas. Os festivais não são como o sábado semanal. O sábado, como sinal, nos lembra a criação do Universo, sendo, portanto, eterno em sua relevância. Deus estabeleceu o sábado no fim da semana da criação, quando ainda não havia pecado na Terra e, consequentemente, nem sacrifícios nem festas. Diferente dos festivais, o sábado é parte dos dez mandamentos e foi dado a toda humanidade. De fato, sua origem antedata a entrega da Torá a Israel no Sinai (Êx 16:23-28).

Além disso, Levítico 23:3, 4, que registra os festivais junto com o sábado, sugere que existe uma diferença essencial entre as duas categorias de dias santos. Ali, o sábado é mencionado no início da lista. Então, os outros dias são relacionados sob a designação: “São estas as festas fixas do Senhor” (v. 4), sugerindo que o sábado pertence à outra categoria diferente de “festas”. Embora o sábado também implicasse sacrifícios (Nm 28:9, 10), é significativo que a indicação de oferta pelo pecado, que sempre aparece relacionada aos festivais, esteja ausente na referência ao sábado. Essa clara distinção indica que a função dos sacrifícios no contexto do sábado é essencialmente diferente da função no contexto dos festivais.

O sábado difere não apenas de qualquer outro dia da semana, mas também de qualquer dia de festa. É digno de nota que essa diferença, e até a superioridade do sábado em relação aos festivais, é sistematicamente indicada na leitura litúrgica da Torá. No sábado, há mais participação nessa leitura do que em qualquer dia de festa. Igualar o sábado aos festivais é fundamentalmente errado e afeta o verdadeiro significado desse dia, finalmente comprometendo seu caráter obrigatório.

A compreensão de que o sábado difere dos festivais, e é mais importante que eles, nos ajuda a compreender a natureza da ligação entre os dois mandatos. O fato de que Levítico 23 os relaciona juntos, embora destacando a diferença entre eles, sugere que o sábado é a coroa, o clímax dos festivais. Paradoxalmente, essa ligação especial contém uma lição sobre o valor relativo dos festivais e o valor absoluto do sábado. Em vez de levar à promoção da observância dos festivais, o estudo deles deve nos levar à maior compreensão, apreciação e experiência do sábado. Pois o sábado “é o fundamento de todo tempo sagrado”,3 e assim contém e cumpre todos os valores e verdades sugeridos pelos festivais.

Sábado e Lua Nova
Entre as festas, a da Lua Nova ocupa apenas lugar secundário. Diferente de outros dias santos da Bíblia, essa festa nunca é qualificada como dia sagrado em que todo o trabalho era proibido.4 No período do primeiro templo, era relegada à condição de “semifesta”, e sua observância desapareceu totalmente durante o período do segundo templo. Assim, na metade do quarto século, quando os sábios tinham estabelecido um calendário permanente, a proclamação do dia da Lua Nova foi descontinuada.5 A tradição judaica geralmente designa um papel “menor” para essa festa.6

Portanto, é surpreendente que a festa da Lua Nova tenha recebido renovada atenção ultimamente, por parte de alguns religiosos. Uma justificativa para isso é Isaías 6:23: “E será que, de uma Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante Mim, diz o Senhor”. Esse texto é usado para sugerir que a festa da Lua Nova será observada no Céu juntamente com o sábado. Mas, o texto em si não fala tanto da observância dos dois dias. Ele enfatiza a continuidade da adoração, uma característica da Nova Terra. Com esse propósito, o autor bíblico se refere a duas extremidades de tempo: “de uma... à outra”; “de um... a outro”. O que esse texto realmente diz é que a adoração continuará como uma atividade da eternidade – “de uma Lua Nova à outra”; “de um sábado a outro”, como se dissesse: de mês a mês, de semana a semana.

Uma segunda razão atualmente oferecida para a observância da Lua Nova é que a lua determina o dia de sábado. Com base em textos como Gênesis 1:14 e Salmo 104:19, os defensores dessa ideia argumentam que o sábado semanal estava originalmente ligado ao ciclo lunar. Realmente, esses dois textos relacionam à lua às estações (mo’adim). Desde que Levítico 23 inclui o sábado na categoria de mo’adim (estações, convocações; v. 2), e desde que a lua regula as estações (Gn 1:14), alguns concluem que ela também governa o sábado. Mas esse argumento suscita alguns problemas, incluindo os seguintes:

·         O significado da palavra hebraica mo’adim. Ela se relaciona ao verbo y’d (Êx 30:36; 2Sm 20:5) cujo significado é “designar” um tempo ou lugar (2Sm 20:5; Jr 47:7). Então, mo’adim se refere a “designação”, “reunião”, “convocação” no tempo ou espaço. Agora, nem todas as convocações (mo’adim) são reguladas pela lua. Quando Jeremias (8:7) usa esse termo para se referir aos tempos de migração da cegonha e outros pássaros migratórios, ele não implica que a migração da cegonha seja governada pela lua, uma vez que ela volta regularmente à Palestina em toda primavera. Mo’adim simplesmente se refere a um tempo específico ou lugar designado por seres humanos (1Sm 20:35) ou por Deus (Gn 18:14), podendo ser semanal (1Sm 13:8), mensal e anualmente (Gn 17:21), ou mesmo profeticamente (Dn 12:7). Assim, não depende necessariamente da lua.

·         A ideia de que o sábado depende da lua nova foi originalmente copiada da pressuposição histórico-crítica da influência de Babilônia sobre a Bíblia. De acordo com essa visão, o sábado foi originalmente tomado ou do costume babilônico sobre os dias lunares, dias proibidos associados às fases lunares, caindo nos dias 7, 14, 19, 21 e 28 do mês, ou do dia mensal de lua cheia (shab/pattu). Mas esse argumento não tem apoio na Escritura e já não é levado a sério pelos eruditos bíblicos.7

·         A ideia de dependência do sábado da lua – colocando-o em qualquer dia da semana, dependendo do movimento desse satélite – contraria o testemunho da História. Primeiramente, contraria o testemunho dos judeus. Milhões deles têm guardado o sábado por milhares de anos, e essa prática nunca foi mudada nem perdida quer pelo calendário juliano, quer pelo gregoriano. A mudança apenas afetou o número de dias e não os dias da semana.8 Os judeus ainda guardam o mesmo sábado do sétimo dia, dado na criação, o mesmo dia ordenado no Sinai e observado por Jesus e os apóstolos, ou seja, nosso sábado. Essa é uma ideia baseada na especulação humana, assim como a tradição humana substituiu o sábado pelo domingo.
·         O argumento de que o dia da crucifixão de Jesus foi a Páscoa, ou seja, o 14º dia da lua nova (Êx 12:6) e, ao mesmo tempo, dia de sábado, não pode ser usado para apoiar a ideia de que o sábado depende da lua. De acordo com o testemunho dos evangelhos, Jesus foi crucificado no “dia da preparação” (sexta-feira) e não no sábado.

·         O fato de que a função da lua começou no quarto dia da semana da criação (Gn 1:14-19) torna impossível identificar o sábado, estabelecido três dias depois, como um dia de lua.

Relacionamento judeu-cristão
A prática cristã dos festivais pode ser contraproducente para o relacionamento judeu-cristão. Os cristãos observadores dessas festas adotam tradições que pertencem a outra cultura, mostrando-se artificiais e falsos. Também serão ofensivos aos judeus que percebem nesse empenho uma armadilha para convertê-los. Os cristãos que imitam os judeus na observância dos festivais, tendem a fazer isso no contexto da liturgia da igreja, envolvendo toda a comunidade, como um evento público. Desnecessário é dizer que essa adaptação é ofensiva aos judeus que, tradicionalmente, sempre celebraram as festas no lar, no círculo íntimo da família. Portanto, a reprodução cristã pode se tornar uma caricatura ou errônea interpretação; na melhor das hipóteses, uma pálida imitação do original. Em lugar de ser meio para alcançar judeus, as adaptações cristãs dos seus festivais podem afastá-los.

Por outro lado, a observância dos festivais pode aproximar os cristãos dos judeus, cujas tradições os primeiros têm sido ensinados a desprezar. Na verdade, o antissemitismo foi a principal motivação para o repúdio não apenas do sábado, mas também das festas. Aparentemente, pela observância dos festivais, os cristãos estariam fazendo não apenas uma declaração contra as vozes antissemíticas, mas também, ao mesmo tempo, produzindo uma forma de contextualização para alcançar os judeus. Todavia, a situação não é tão simples. A observância dos festivais encontra sérios problemas teológicos, culturais, éticos e práticos, diante dos quais devemos agir com reservas e bastante cuidado. (Continua)
por Jacques B. Doukhan
Professor no Seminário Teológico da Universidade Andrews, EUA

Referências:
1 Richard M. Davidson, Symposium on Revelation-Book 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), v. 6, p. 120.
2 Ángel M. Rodriguez, Israelite Festivals and the Christian Church (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2005), p. 9.
3 Roy E. Gane, Shabbat Shalom 50, nº 1 (2003), p. 28.
4 Ibid., p. 414.
5 The Oxford Dictionary of Jewish Religion (Oxford: Oxford University Press, 1997), p. 591.
6 Irving Greenberg, The Jewish Way (Nova York: Simon & Schuster, 1993), p. 411.
7 Gerhard Hasel, The Sabbath in Scripture and History (Washington, DC: Review and Herald, 1982), p. 21, 45.
8 http://en.wikipedia.org/wiki/gregorian_calendar (acessado em 30/03/2009).